quinta-feira, 8 de novembro de 2018

kalashnikov (Bruno Sanctus)

kalashnikov (Bruno Sanctus)


nunca conheci um deus que não fosse uma ak-47 carregada,
cujo coração desértico
ecoa a solidão dos cânions.
seu choro, sua língua
pólvora queimada sobre
o lodaçal da fome de mariana.
negligente quanto a própria fé
e de razões obtusas.
sustentado por jargões.
tarô de velha cega
que perdeu o tato.
prece de benzedeira muda
e com alzheimer.
chauvinista para acolá do miserê
pós paraíso,
onde os edifícios fálicos
arranham o céu da boca.
orgulhoso demais para
sacrificar seu cavalo de tróia,
sua moeda sem face,
seu quinhão de guerra;
pois sabe que o ódio
catequiza melhor que a inquisição
espanhola
e os crucifixos apresentam-se
como interface amigável.
como uma proposta faustiana
do qual não consigo rir.
seus beijos são mais insossos
que os votos de sogra.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

PRECE DE UM DIA QUASE IGUAL A TODOS - Ledusha


Deixo hoje dois poemas e mais um bônus no final da poeta paulista Ledusha, da geração de Ana cristina Cesar, mas com menor reconhecimento e, na minha opinião, muita mais expressiva.



PRECE DE UM DIA QUASE IGUAL A TODOS

Deus dos delicados, não me abandone nessa guerra insana. Minha máquina de ser beira a pane enquanto o veludo da voz de Billie lambe as paredes do lusco-fusco. Abençoe, senhor, tudo que dói em nós, indispensável. As tardes despenteadas em Grumari, as lágrimas do homem que me amou e nunca disse, o negro agonizante sob o sol narcísico de Ipanema, as crianças que tão cedo me deixaram farta de lágrimas e leite, o eco esquivo de Frederico, sinais de musgo. Abençoe as escarpas da minha vida enquanto desenterro estas palavras — o carmim destas palavras — com as lascas afiadas da dor. Sonho piscinas, atraída pelas labaredas. Preciso dormir bem dentro das suas asas enormes, pai.

Ledusha B. A. Spinardi





Os que só tragam com filtro. Os que conduzem a dança. Os de papo requentado. Os que espalham o conflito. Os grosseiros de foulard. Os que fazem as cutículas. Os que têm presas no olhar. Os prósperos despreparados. Os que vão lamber o limbo. Os belos atormentados. Os previsíveis sem sal. Os ternos de abraço manso. Os que usam o saber como arma de poder. Os que citam sem parar. Os que gostam de mulheres. Os que gostam das mulheres. Os mitos desamparados. Vampiros por trás de lentes. Os que só querem mamar. Os que portam falos bélicos. Os marinheiros sem mar. Os que nos devolvem o riso. Sensíveis sem onde morar. Os que decifram. Os que devoram. Casados infantilizados. Os que consertam cadeiras. Os indeléveis carnais. Os de coração falido. Raros sexys calados. Os gananciosos banais. Marxistas que espancam mulheres. Os que se desmancham no ar.

Ledusha B. A. Spinardi



BABY LONEST

(Esse poema da Ledusha foi adaptado e musicado por Cazuza e Lobão e gravado no disco "O rock errou" do Lobão em 1986).


Baby lonest
Ninfa do asfalto
Todo o ocidente nos ombros
Que a noite defloram dentes
E depois adormecem

A vida de alôs e beijos
Os sábados na cidade
De Telerj em Telerj
O amor te deixa em cacos

Metade da mesada em fichas
E os corações ocupados

Não chore, honey, não chore
Oh, honey, não chore

Amanhã tem baby lonest
Amanhã tem
Amanhã tem baby lonest
Amanhã tem

Baby lonest
Olhos injetados
Nas pernas daquela avenida
Baby lonest
Sonho de amor suicida
Baby lonest
E os olhos de sangue
Nas pernas daquela menina
Nas pernas daquela menina

Amanhã tem baby lonest
Amanhã tem baby lonest
Amanhã tem

Não chore, baby, não chore
Oh, baby, não chore

Amanhã tem revolution
Amanhã tem 
Amanhã tem revolution
(Poema de Leduscha adaptado por Cazuza e Lobão)

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Vidigal: O livro

O músico Beto Dorneles lançou seu primeiro livro, Vidigal, na Livraria da Travessa/Botafogo, no dia 16 DE AGOSTO DE 2018 pela Ibis Libris Editora. Escrevi a orelha desse livros corajoso e revelador. Veja ela abaixo:





Conheci Beto Dornelles quando ele tocava no bar mais sofisticado do Baixo Leblon, a uma quadra do bar onde Cazuza escreveu algumas de suas mais belas letras. Dali para o Vidigal é um pulo: são localidades vizinhas. Mas o que elas têm em comum para por aí.  

Beto morou no Vidigal por pouco mais de três anos, como um bom andarilho da arte. É justamente por isso que ele pôde, com o olhar de quem é de fora, experienciar até o talo a vida na comunidade carioca do Vidigal. Viveu intensamente o que de melhor ... e pior ... o morro pode oferecer. 

A diferenças entre o Baixo Leblon e o Vidigal são dignas do apelido 'Belindia', mistura de Bélgica e Índia, que o Brasil ganhou nos anos 70. Mesmo que o Vidigal de hoje seja um bairro totalmente asfaltado e com todas as construções em alvenaria, ainda existem resquícios culturais de uma comunidade oprimida e que serviu por décadas para abrigar os trabalhadores que serviam à Zona Sul.

Dornelles, corajosamente, põe o dedo na ferida social, inclusive abrindo-se em confissões pessoais que muitos esconderiam a sete chaves. Não poderia deixar de ser diferente para ele, com sua personalidade apaixonada e contestadora. "Na real", como se fala no Rio, Beto desconstrói mitos sobre as comunidades carentes e mostra como lá existem pessoas talentosas, cultas e antenadíssimas, que lutam para fazer a diferença no sistema constituído de forma a mantê-las condicionadas como serviçais da "Casa Grande" carioca.

Rapidamente, com seu carisma, Beto foi considerado um músico local, a despeito do bairrismo dos moradores que pregam, até com certa agressividade, que quem é de fora não é "cria" do morro. Prova disso é que Beto foi o representante do Vidigal no show "tijolo por tijolo", comemorando 75 anos da comunidade, a convite do compositor (e morador) Sérgio Ricardo. No palco, beto abriu o show para os homenageados Chico Buarque e João Bosco, que se apresentaram juntos.
   
No mais, a vida no Rio segue, com mais pessoas se conhecendo no Baixo, como Cazuza escreveu: Conheci um cara num bar lá do Leblon / Foi se apresentando 'Eu sou o Billy Negão' / A turma da Baixada fala que eu sou durão / Eu só marco touca é com o coração" ...

Alvaro Nassaralla


terça-feira, 24 de julho de 2018

Maremoto

Ao que tudo indica,
serei novamente dono da dor
ou a dor dona do meu verso,
dos meus dias: até quando?

Deve ela desaparecer o quanto mais rápido
mas não posso negar que se me consome em desespero,
sou em quem devo esperar
até que ela se decida por nova trégua,
nova légua caminhar de mim para longe,
ter-se nuvem a espraiar nos confins dos maremotos.

Moto de vida, contínuo de estar,
constar subvivo de espécie, 
respiração do anjo que sente junto,
está para a ordem do dia
correr e desaparecer paradeiros. 


A. Nassaralla
25/07/18