sexta-feira, 11 de outubro de 2013

MISSISSIPI


Diante a vastidão do Mississipi,
apoiado em seus parapeitos quilométricos
pude ouvir sem beiradas,
palavras recortadas em negrito
palavras que ouvi no silêncio barulhento da mente:
– Sou um vagabundo em qualquer lugar do mundo

Diante a vastidão do Mississipi
ouvi o duradouro dos séculos
como as primeiras aulas que o tempo serve na bandeja da vivência
e a alma dizendo o que está há muito, muito tempo dizendo

Diante a vastidão do Mississipi
apoiado na mureta das margens, olhos na distância
num único pensamento translúcido,
limpo e azul como o volume imenso de água resignada
deslizando preguiçosamente em direção ao delta,
ouvi uma voz soprar por dentro do ouvido:
– Sou mesmo um vagabundo em qualquer lugar do mundo que eu vá

No instante,
milhões de almas azuis reuniram-se.
Juro que não tenho mais me metido em confusão:
minha paixão está mais calma.
Os pensamentos, confusos como sempre
mantendo-me ocupado demais,
sempre procurando uma nova saída

Nas margens do Mississipi, calmaria.
Os calados dos navios manobram a curva
do velho, manso rio

Próximo à margem,
aves habitam o assoalho terroso
saciadas ou esperando a hora certa de fisgar
seus peixes,
bem onde o gigante perdeu o pudor
e quase como que tocando um Dixieland de bordel
deixou, como rendas de putas,
seu leito aparente

Enquanto que eu
aprendiz dos aprendizes
não fixo um sequer saber em quem sou.
Sou o pior dos aprendizes
pois que me falta deslumbre,
sobra-me pó dos tempos.
Tenho o consolo dos milenares meretrícios e dos clarinetes
com seu som agudo-amadeirado

Mississipi
pai do pai das saudades
caudaloso manso azul
roçando seus ombros nos diques
soprando trompetes amanteigados quando desliza sob os deques
driblando seus ancoradouros no entardecer

– Diga-me, ó imenso velho Rio,
quem vive de alma, quem vive de orla, quem vive de margem?

– Ó grande Divindade! Um dia quis ser perfeito
e de perfeito, o que me sobrou
foi a mais completa correnteza,
mais luminosa desastrez. E você,
grande e manso, carrega sem peso
águas imensas e amontoadas

E ele me responde:
– Estou cansado. Venho rolando como línguas epilépticas a milhares
de milhas. Agora estou por pouco dando-me ao mar.
Quantas canções ainda para serem carregadas correnteza acima ou abaixo,
junto a corações partidos terei?

Seus navios passam carregados de cereais, talvez minerais.
A lua
completa de círculo
surge, bem na direção do delta

Apoiado em seus parapeitos,
não me sinto mais um vagabundo:
sinto-me amado, sinto-me lugar,
sinto-me novo de novo

Quantas luas estarão entre nós, novamente, ó Mississipi ?
Eu, diante sua imensidão
e você, escorrendo águas marinhas, pedras de água azul,
doces lâminas de abandono?

Ei, a vida é só de partida.
Cada dia uma nova vida.

Assim assina o Gigante azul

New Orleans 
De 13 a 27 de setembro de 2013


Vento de ressaca

Outubro
no sol
vento de ressaca invade minha
camisa, botando-a a dançar
desengonçada.

Outubro vento de ressaca.
Enxergo-te primeiro como elegante desespero,
despreparo da chuva que se foi
e o vento queimando a cidade com jasmins frios,
oxidados de uma nova primavera.

Fino manto
supõe distâncias,
vento malhado de cheiros que procura
a areia engomada,
que a procura da mais alta alegoria do céu:
vemos Vênus mexendo-se cintilante a dizer
que tudo se resume na noite que inda vem,
e a tarde passa
e eu estava apenas na beira do trilho,
e o trem passa na velocidade com que o barulho da batida se repete
nas emendas.

Pego no seio ensaguentado do vento
e num calhamaço de mariposas trajando poemas nos desenhos das asas
para que me palpitem esperanças aniquiladas.
E vamos à luxúria branca e ouro
que o vento traz desabotoando fêmeas de tantas longitudes
quantas possa o poeta amar.
E traz sementeiras e naufrágios
e ilusões gostosas de morder.
E não se vai o vento de ressaca
antes de arrancar algumas telhas e pétalas,
tudo ao seu tempo
para anunciar um novo sol companheiro.

Mas é punhal bandoleiro no coração
sensível,
desde que o próximo passo seja não se conformar
com as inverdades do mundo.
Posso dar meu urro de revolta ao vento,
somente mais um sedimento que ele já carrega,
somente mais uma duna movida de lugar.                                                                 

Que seja: uma duna movida de lugar já é alguma coisa.

Outubro, vento de ressaca.

Outubro é um trem veloz que passa e
deixa o cheiro de querosene nos trilhos.


09/out/13