segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Riso



Alvaro Nassaralla
17/fev/16



Eu atravessei todas as eras e estou aqui.
E como é limitado ser humano:
tudo o que eu faça, por mais que faça,
ainda será pouco ou nada diante do todo.

Recolho-me a insignificância humana
imitando-me dia após dia
canção sobre canção
não sendo importante
mas se um dia o for, menos ainda
serei de importância real.

Porque o real é o olhar através das distâncias inoculadas e mal interpretadas,
e partir sentimento, voltar tempestade
e ir-me como maré revolta.

Com meus papéis e palavras me embrulho
de circunstâncias bobas, tolas
em relógios bombardeados que continuam funcionando
retorcidos no chão dos campos de batalha,
ou nos relógios das torres
que passam anos marcando violências,
futilidades, mesmices
que só o amor seria capaz de curar.

Não há lugar para o pessimismo
mas é muito cedo para que o amor se faça inteiro
se as dálias são ainda crianças e não atingiram
a compreensão de seus longos caules
e da força híbrida imposição-aceitação.

Com um pouco de sorte atingiremos algo próximo ao amor
algo que não tão sério quanto querem que eu seja:
mesmo a chuva goteja purpurinas translúcidas nas janelas.
Estamos tão a parte do que deveríamos ser para o próximo
que já sinto nossos rituais de desculpas chegando,
absorvendo-nos de fantasmas que gingam aos pés do ouvido.

Se for por nós mesmos, seremos sempre inocentes,
sempre heróis dos hábitos e da mediocridade
como um continente de corações atulhados na mesma vida
no mesmo envelhecer laboral
andando sobre nossos cascos de verdades intolerantes
nunca nos dando o direito de acreditar no novo.

E como limitado é o ser humano,
porque nada deveria ser mais sério que a mão
deslizando arranhaduras sobre um ramo de trigo,
a criança drogada no soro brilhante do sol,
as belas fodas debaixo da escada,
o coração cantando na forma habitual de um passarinho,
as asas no voo raso do desejo campeiro,
a liberdade borrada e sorridente da velocidade máxima
que podemos ser enquanto vivos.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Prometo lhe causar mais estragos - Edu Planchez


Prometo lhe causar mais estragos 

Edu Planchez


por todo estrago que lhe causo com minhas palavras,
prometo lhe causar mais estragos,
mais vocábulos horrendos zunirão
por sobre tua cama,
sobre tua vida banal
de Zezé de Camargo e Luciano

meu cotidiano de merda e o teu cotiano de merda,
se encontrarão para fabricarem bombas caseiras,
fétidas canções repletas de bundas,
amores infantis, mentes vazias
entupidas Coca-Cola

você vai dormir no carnaval
e acordar na novela das nove,
no umbigo da burrice ecumênica,
no intervalo de um peido e outro

por todo estrago que lhe causo com minhas palavras,
prometo lhe causar mais estragos,
mais vocábulos horrendos zunirão
por sobre tua cama,
sobre tua vida banal
de Paula Fernandes e Ivete Sangalo

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Quando esse navio negreiro passar




Quando esse navio negreiro passar

Leonardo Rocha

Quando esse navio negreiro passar
Vamos ver quem ficará
Onde vamos morar
Senão na própria alegria

O navio é grande
O início não conhece o fim
Enquanto sua imensidão passa
Como se morasse em nosso tempo
Seremos iludidos por uma falsa liberdade

O navio anuncia aos quatro ventos
Os cativos tem seus nomes nos contratos
Proprietários de um calabouço abstrato
Fingem que sentem o ar próspero do amanhã

Quando esse infindo camburão passar
Deixará suas marcas na eternidade
Na carne magra e resistente dos homens
No sexo frágil e banalizado das mulheres

Que seja breve essa passagem
Na vertiginosa retina
E não essa eterna miragem
Enganosa, ilusória e cretina

Todo hospital tem um pouco
De navio negreiro
Todo coletivo tem um pouco
De navio negreiro
Toda delegacia tem um pouco
De navio negreiro
Esquartejando a pobreza em metades
Vendendo os pedaços
Cobrando o preço de inteiro.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Rubaiyyats inspiradas por Omar Alkhayyam

Aí vai uma pérola do poeta Hani Hazime, Coordenador de Língua Inglesa da UFRJ e grande amigo!

Omar Alkhayyam (no ocidente, Omar Khayyan), autor do clássico Rubaiyat)


Rubaiyyats inspiradas por Omar Alkhayyam
Hani Hazime

-- Tivemos tempo bastante,
Para degustar nosso amor
Mas não o soubemos levar adiante
Só giramos ao seu redor


-- Não me importa se a vida me vai
Nem lamento, se meu corpo cai
Que venha a morte,
Eu não soluço nem digo ai
 

-- Apesar de muito tarde,
entre o silêncio e o alarde
Descobri a verdade que me arde
 

-- Entre o tédio que me consome
E o assédio que mata a fome
Eu me transformo em super-homem
 

-- Beba, pois, sua última morada
é a terra derramada, sem amigo e amada
E cheira o aroma da vida na sua alvorada
Porque não floresce a rosa quando fica murcha


-- Apagas o fogo do coração,
pelo frescor da bebida em sua plenitude
Pois os dias são qual as brumas
E nossa vida é ilusão, então tomas
sua sorte, antes que termine a juventude
 

-- Se há de morrer só uma vez ,
então morra logo de vez
Para que fim, viver assim, com receio de revés
Se amei, eu não sei
Se me amaram, não me informaram
Ontem foi outro dia, hoje sigo outra via
Então Beba até chegar à embriaguez
Pois a matéria passa,

mas a essência vive outra vez

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Praia Preta


Por Álvaro Nassaralla

Praia Preta, Ilha Grande (Foto pertence ao Blog Tardes Poemas)

Minha armadura dessangrada de lírios
boia cruel perante céu abusado de carnes:
nasce a meia lua cravando-me o punho no coração
no ritmo das máquinas que empurram a vida
como o amassar de uma manteiga dura
e desaba a metade certeira da verdade
que nada vale aos peixes sob noite limpa:
o riacho cristalino de basalto, de palavras, de pureza
de camadas imantadas,
pousa validade no mar.

Olho o céu como um garimpeiro
coando a via láctea no acento magnésio de estrelas partidas de saudades,
com a febre fria do desenho escorpiano 
ou me abro como a cruz do norte
rios, esquadros e riscos que fazem aos olhos andarem pelo céu
e nos pés a areia, em balbucio, finca-se magnetita, quartzo e feldspato
trocando laminações em degradê entre o branco e o preto
o entroncamento de águas desenhando densidades,
na madrugada que estive em ti.

Praia Preta, que assim te batizaram
confesso
que poeta que imã
vítreo e metal 
sempre estarei grande e pequeno demais
dentro do sedimento magnético que você me flutuou. 

Praia Preta, Ilha Grande
02/02/16