terça-feira, 6 de setembro de 2016

Chacal e a reunião de sua poesia de 1971 a 2016



Confortavelmente sentado na livraria, peguei do exemplar Tudo (e mais um pouco): Poesia Reunida (1971-2016), que como o nome diz compreende todas as publicações nesse período do poeta carioca Chacal.

Pude ter uma visão geral da imprescindível importância de se batalhar poesia nos anos 70 (repressão militar) e 80 (período de muita alienação provocada por um comportamento quase psicótico de grande parte da sociedade brasileira).

A poesia de Chacal, como um todo, me impressiona pelo acabamento e ritmo suave, quase que escondido, correndo por trás dos versos. O vigor se mantém até os dias de hoje como no Alô poeta (2016), o mais recente livro que já vem na citada reunião.

Vou deixar um dos poemas que mais gostei.




CONVALESÇO

convalesço
dos males que me infligi
das noites que não dormi
mulheres que em vão amei

convalesço
da vertigem que fiz de mim
do cavalo que quis meu fim
vida que desesperei

restabeleço contato
com tudo que quis pra mim
com o tanto que um dia eu fui
com o tal que desaprendi

restabeleço contudo
com tato tempo e afeto
com nada chamado pressa
nem nunca de outra de horror

com calma amanheço
da delirante noite do ópio
da nebulosa treva tenebrosa
do uivo lancinante do demente

amanheço
com a boca seca da miséria
com o lábio rachado do pavor
com o cinzeiro entupido de visões 
amanheço com calma


CHACAL

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Poetas irmanados


Como em uma irmandade, estamos sempre movimentando as energias criativas de nossas percepções em torno das pessoas que nos inspiram e que se mantêm em alta sintonia de alma.  Nesse sentido, Edu Planchêz, poeta radicado no Rio de Janeiro – algo como um dos meus extravagantes preferidos (não que me exclua dessa adjetivação) – escreveu o poema abaixo para meu outro poeta irmanado, Diego El Khouri.

Esse ano também escrevi um poema para o Planchêz (que está por aí nesse blog há algumas postagens atrás, rs) e em anos anteriores ele me escreveu um. Acredito que o reino dos poetas que não buscam agradar aos conceitos burgueses naturalmente se reúnem como uma forma de sentirem-se pertencentes em um mundo estranho.

Falei e agora posto o poema do Planchêz, também publicado no blog de Khouri, intitulado Molho Livre, o qual está lincado no fim dessa postagem para que você possa visitar e conhecer.


 


DIEGO EL KHOURI, VELHO IRMÃO DE PAJELANÇAS
Por: Edu Planchêz


Diego El Khouri, velho irmão de pajelanças
e caramujas sonolências,
de arbustos e tonéis de ácidos,
aqui vivendo os zunidos das horas, o arrulho da pança
alimentada pelo queijo que acabei de roubar,
continuo o mesmo Zapata, pistoleiro súbito,
homem-tarantula das negruras,
espinhoso escaravelho

Alvuras nas quentes redes dos arcos
onde a iris se esconde,
onde me escondo com minha ama de leite,
das ladroagens da morbidez dos roedores de dinheiro,
da astúcia ornamental dos mulambos da velha família
oriunda da formiga cortadeira e do coco do bandido
do cavalo que nunca leu nem bula de remédios

Caro amigo, os azulejos do nada pestanejam
cá nas ganancias de ver-te em breve
envolto em anéis de ardumes
e sedas embebecidas de perfumes


---


Conheçam o blog do poeta, pintor e fanzineiro dos unders legal, Diego El Khoury, no link: MOLHO LIVRE.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Breve convocação para quebrarmos a matrix



A. Nassaralla (jul/16)

Classe média absoluta
dá-me teu nojo
tua soberba (com fundo falso)
tuas contradições abertas bem embaladinhas
e a novidadeira fútil das suas delícias de butique
tudo dentro do café requentado das ilustríssimas modas


Vá varrer toda a sucata dos dias para baixo do tapete
como varre o restante de hipocrisia
com o qual se reverencia
e perfura seus relógios com distrações de grife,
euforias de estirpe comprada
luxúria de luxo alugado
fazendo de tudo para escapar da referência média
medida social para que a destaque dos habitantes da pobreza


Bichinho de pelúcia
das provas sociais de ascensão.
Sente-se escolhido
dentro de uma ilusão barata e semi-precária,
com suas batalhas que já começam perdidas
em poderes de consumo no crédito oportuno,
rezando terço ou ao relicário para que no fim do mês
os santos o ajudem a saldar despesas contraídas
sempre ao ego concedida
como empréstimo de ostentação
financiada a juros


Classe média absoluta
dá-me o bagaço do que ao rico já entreteve e
agora por pura cópia do que antes não tinha acesso
consome como xepa de shopping ou tour de viagem
um montante de produto e entretenimento alienado
na derradeira tentativa de comprar
a prova social da novidade amarrotada
que você tanto anseia e estima
sem se dar conta de que a mercadoria
com a etiqueta de idiota
é sua próprio CPF, sua própria vida,
sua alma arrendada

terça-feira, 19 de julho de 2016

DOSSIÊ: POEMAS PARA O NOSSO TEMPO (Revista Cult)


DOSSIÊ: POEMAS PARA O NOSSO TEMPO - Revista CULT - n. 213 - ano: 2016


A revista Cult disponibilizou no seu site o Dossiê sobre poesia contemporânea publicado em sua edição passada. 


O dossiê é composto por dois artigos escritos por Heleine Fernandes de Souza e Alberto Pucheu.


Os autores foram felizes em afirmar que os poetas destacados e analisados não representam o que existe hoje em diversidade e qualidade. São apenas uma pequena mostra para que o ensaio pudesse ser feito.


São citados os seguintes poetas (alguns com poemas reproduzidos na matéria):


Angélica Freitas, Bruna Beber, Annita Costa Malufe, Marília Garcia, Sergio Cohn, Ana Martins Marques, André Luiz Pinto, Pádua Fernandes, André Monteiro, Tarso de Melo, Antônio Lazzuli, Mariana Ianelli, Maíra Ferreira, Leonardo Gandolfi e Caio Carmacho,


Além desses nomes, juntam-se outros três com "o trabalho inespecífico entre poesia, narrativa, vídeo, artes visuais e performance, que tem sido feito": Victor Heringer, Laura Erber e Ricardo Domeneck.


Importante também citar dois trechos do Dossiê em que são analisados dois poemas que me chamaram a atenção. O primeiro, "a mulher pensa", no qual a poeta utilizou o buscador Google para achar as sentenças mais procuradas pelas pessoas a partir do tema-título. Heleine Fernandes de Souza assim escreve:

"Na seção “3 poemas com o auxílio do google”, Angélica Freitas faz um ready-made a partir de informações disponibilizadas pelo dispositivo de busca do Google, dando a ver o quão restritivo e proibitivo pode ser um discurso de saber. Segue o segundo poema da série:
a mulher pensa
a mulher pensa com o coração
a mulher pensa de outra maneira
a mulher pensa em nada ou em algo muito semelhante
a mulher pensa será em compras talvez
a mulher pensa por metáforas
a mulher pensa sobre sexo
a mulher pensa mais em sexo
a mulher pensa: se fizer isso com ele, vai achar que faço com todos
a mulher pensa muito antes de fazer besteira
a mulher pensa em engravidar
a mulher pensa que pode se dedicar integralmente à carreira
a mulher pensa nisto, antes de engravidar
a mulher pensa imediatamente que pode estar grávida
a mulher pensa mais rápido, porém o homem não acredita
a mulher pensa que sabe sobre homens
a mulher pensa que deve ser uma “super mãe” perfeita
a mulher pensa primeiro nos outros
a mulher pensa em roupas, crianças, viagens, passeios
a mulher pensa não só na roupa, mas no cabelo, na maquiagem
a mulher pensa no que poderia ter acontecido
a mulher pensa que a culpa foi dela
a mulher pensa em tudo isso
a mulher pensa emocionalmente"

in: Um útero é do tamanho de um punho (2012), de Angélica Freias.



No segundo artigo do dossiê, escrito por Alberto Pucheu, temos o segundo poema que me chamou a atenção:


"Pode ser constatada ainda a presença de um tipo de poesia que não se deseja profunda nem – previno – superficial no sentido habitual dessa palavra, mas que incorpora obsessivamente traços da cultura de massa sem se render a ela e extraindo dela intensidades e humores insuspeitos, como, para dar apenas dois exemplos, a de Leonardo Gandolfi e a de Caio Carmacho, de quem trago um poema de livre-me, sua estreia (2013):

espírito natalino
que seus parentes bêbados não destruam a mesa
vomitem nas samambaias briguem no meio da
ceia no meio da rua à porta do banheiro por
causa de herança da opção sexual do time de
futebol de um dos sobrinhos afastados que até
pouco tempo atrás dividia o quarto com mais
dois universitários de curitiba imagine só a cena
sua vó chorando a morte do poodle da família
dizendo que preferia morrer a ter que continuar
os dias sem ele seu pai introspectivo registrando
tudo ao mesmo tempo com a tekpix última
geração profetizando que se o mundo não acabou
no dia 21 foi por um erro de projeção mas que
deste natal ninguém passará incólume enquanto
os menores rasgam suas caixas e agradecem
a graça recebida as bermudas e camisetas
importadas da feirinha você suando feito um
cavalo enchendo o cu de peru flertando com o
decote daquela priminha adolescente de seios
desenvolvidos e procurando as palavras certas
para se desculpar com a noiva namorada a vida é
assim mesmo meu amor todas as passas são uvas
de águas passadas.
boas festas!"


Agora deixo o link dos dois artigos do Dossiê Poemas para o Nosso Tempo para quem quiser se deleitar!

O indiscreto charme da poesia contemporânea
Fortalecendo a circulação de diferentes preocupações e lugares éticos, a autoria das mulheres toma corpo de um modo inédito na literatura brasileira


Poesia que intervém no tempo
A nova geração de poetas brasileiros dedica-se à criação de afetos, pensamentos, linguagens, gestos


sexta-feira, 15 de julho de 2016

Canção para a pequena garota azul - Janis Joplin

Assisti ao filme da cantora Janis Joplin e no dia seguinte foi impossível evitar esse poema que saiu como um jorro praticamente completo.

O filme 'Janis: Little Girl Blue' entrou
em cartaz essa semana (12/jul/16)

CANÇÃO PARA A PEQUENA GAROTA AZUL
A. Nassaralla (12/jul/16)

à Janis Joplin


Acho que entendo que os poetas verdadeiros largaram a escola para trás
e procuram atender a tudo menos a ela, não é mesmo pequena garota azul?


Tudo menos as regras. Tudo muito, tudo menos as fórmulas.
Tudo menos a teoria. Tudo menos o que não somos,
e o que somos está livre das escolas da humanidade,
está nas estrelas e cadências do Universo,
está no que é impossível de planejar
no caminho dos corações imensos,
serenata de silêncios de grilos 
e você cantando Summertime
com as temperanças de seu sexo, 
permitindo-se tocar no que está apenas para os deuses:
- sua voz, elixir dos libertos.


Agora, sua obra é para quem procura amor e a si mesmo
nessa terra estranha a nós, os que nos defendemos aos pontapés.
Já passamos há tempos para o lado de lá;
impossível que se volte,
e cheiramos a liberdade sufocante de ser quem somos.


Enquanto uma manhã deleita-se às pratarias do sol dançando brilhos no mar
e tantas outras são-nos estrada para fixarmos o diferente
e o sistema apregoando firmemente que somos desajustados, mal capacitados, coraçãozudos demais para entender de finanças e capitalismos,
de famílias, de costumes, de limites, de ovelhas,
entender pastores eleitos por outros pastores,
tradições, e demais convenções preliminares para o bom funcionamento social,
da ordem e da prudência.
Estaremos de outra forma, apenas cumprindo sinas,
despertando os lados calados de todos, as almas desligadas do mundo
as consciências adormecidas com o 'Boa Noite Cinderela' das mídias.


A garota vai botando a mão das palavras e de seu canto nas cabeças e destrancando 
ilusões que eles franquiam, e em toda esquina dos pensamentos
eles estão lá para nos assaltar a vontade própria.


Pequena garota azul
que sua mensagem de potente menina indefesa
continue cantando às gerações,
a esperança de aves no céu,
de que se estar livre também é estar sozinho em si mesmo,
de que seu homem te deixou e você continua chorando 
para nunca deixar de amar alguém,
cantando loucamente que "precisa de um homem para amar"
e que se as pessoas que queremos que nos entendam não estão prontas.


O mais importante é seguirmos a missão,
ver nossos corações de dentro para fora, 
instinto de filhote na selva,
o caminho das últimas horas da madrugada em que o escuro cede
e as formas vão se tornando mais nítidas.


Isso: nitidez. A isso viemos, a isso entregamos nossa vida:
nitidez, a isso despertamos.
A liberdade tem uma grande dose de nitidez.


Apareça pequena garota azul, 
continue sua viagem 
sua verdade da estrela livre
aos beijos e abraços com o destino insolente de sua mensagem,
como um passarinho voando e 
que avisa, desde já, e, talvez, sua direção seja a diferença,
a única correta: 
preencher o que ninguém mais teve coragem, 
botar no amor
sua alma inteira.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Inocentes de tudo - Ruben O.


Pesquisando na web encontrei esse maravilhoso poema em inglês intitulado Innocents of All do poeta Ruben O. Prosseguindo a pesquisa não consegui descobrir nada sobre o poeta mas fiz a versão para o português.

Imagem espalhada por cartazes nos Estados unidos com a sinistra figura do Tio Sam convocando jovens para o alistamento nas forças armadas.
 


INOCENTES DE TUDO
(por  Ruben O.)
Versão em português: Alvaro Nassaralla

Vamos retroceder décadas ao sol
secando a cola dos posters 
—  o dedo comprido apontando para nós —

chamando: 'nós queremos você'
quando as guerras começavam em línguas guturais e
com seus embustes costumeiros. Parece

que temos confiado por tanto tempo em posters
mesmo os via antenas, e agora em pixels. 
Nós-queremos-vocês no ritual circular, 

um esquema de desculpas seminuas
maximizando                          o medo:
cordas puxadas para transtornar fantoches

que correm para socar adesivos em para-choques
fantoches que, com a mão sobre o coração, agitam pompons ou bandeiras;
inocentes de tudo. 

Nós lhes garantimos palmas
enquanto engolimos quimeras borradas, abismos oportunos
palavras abstratas circulando acima de nossas mentes

em continência. Deitamo-nos
sobre mentiras concêntricas,
esticamos as pernas, fingimos liberdade, e vivemos o mesmo dia

duas vezes.
Dentro de nós, presas em nossas carnes,
guerras implantadas se estendem, pulsam, marcham 

sobre o sal, para a areia, para o bem 
do nosso fetiche asiático. Quantas sequências e capítulos ?  
Aquelas máscaras que usávamos não eram nossas.

Eu acho que vi uma freira grávida — em seu hábito 
a nos exortar 
como eleitores, contribuintes, heróis ... Não importa 

que o nosso lado o tenha sido escolhido para nós.
Acima do solo, somente conseguimos pertencer ao debaixo. Dissimuladas 
sob o nosso apoio acrítico,

guerras manufaturadas,
em mesas – por trás delas - ciclicamente reinventadas.
Unocal, Enron, guerras da construtora petrolífera Halliburton. 

Eu não me sinto menos aterrorizado.
Quem se sentiria? Você se sentiria? 
Limitados pela distância de um lugar afastado

sujeição sobre sujeição pelo ressoar crônico
da transmissão ao vivo. Filhos retornam como heróis
em caixões de cortesia – tão cruel

quanto o petróleo cru possa parecer - retornam suas partes e 
do que nunca fizeram parte. Ou divididos em duas metades, 
perdidos no meio de algum lugar, desejando ser resgatados – de algum

jeito. Caminhe comigo
mesmo que nos enredemos em cordas e listras.
Vamos caminhar olhando direto – para algum dia.

terça-feira, 24 de maio de 2016

POEMA MELODRAMÁTICO - ou Noturno da Mauá


POEMA MELODRAMÁTICO - ou Noturno da Mauá
A. Nassaralla (20/maio/16)


Melodramático é o meu caralho: 
sou melancopunheta das tardes rodoviárias.
Mas o alter, aquele ego, pergunta zombeteiro:
Você quer colocar toda a sua vida numa poesia de estiva?
Não faz sentido, nem diferença:
ou a diferença é o sol boquiaberto,
logrado em vergamento mortuário.

Vou colocar uma grande dose de vagagem
na domingália noturna, então 
onde sou dono absolutamente de nada de mim,
beirando baía, no conforto único
dos brilhos espichados na água longa
dos cais da Mauá.

Nem precisa dizer que há
um zumbido silencioso,
que faz mais fantástica
a luminária que se espalha:
espraiam esponjas de luz amarela
nos cantos da praça.

Pode chamar o cais de cafajeste
mas ele é apenas um homem torto:
só sabe gostar de poemas com espinho,
daqueles que, mesmo de amor, arranham 
e mostram o cadafalso aberto ao universo.

Porque se sou, sou nascido em dor de pétala arrancada,
sou a tarde inteira da criança, olho pousado ao infinito,
o roer de medo e sobre-atacar vândalo,
que pulo a responsabilidade para comigo mesmo,
e jogo fora todos os votos, e penso
o homem só seria livre se nascesse como gato,
súbito de ternura como a tecitura de um campo de lírios,
livre e baldio como um soco no estômago de toda a política da vida,
e mesmo assim, pergunto:
Teria de se esconder entre as quatro paredes das horas do dia
e da vontade egoísta?

O mundo como é jogado só pode ser uma grande sacanagem.
Tirando as cartas marcadas,
quando as coisas começam a dar certo para os anjos
e para os delirantes,
as cartas são embaralhadas
e se é obrigado a começar tudo de novo.

A noite pode esperar como uma barba rala,
além de todas as masculinizações dos olhos cansados e baixos.
É triste como ao pensar nas meninas iniciando-se no sexo
com seus namoradinhos adolescentes,
e os heróis carcomidos por lâmpadas de luz branca;
estamos ficando assépticos demais, flats demais,
filhos da Disney-templo-decadente,
multidão despersonalizada do século XX em direção a poesia despersonalizada do XXI,
crentes que ser moderninho é ser soft. E é mesmo. Não passa disso.
Eu mesmo não posso sê-lo.
Nem sei o que sou !? Navego submarino por um amálgama fluído 
de beira e extremos, de cores e lacerações, de bom exemplo mau,
de perdão e facada.
Ei, a Mauá acabou de me dizer que nesse dia e hora
eles estão em suas casas sendo nada.

Muito menos eu 
que faço confissões como forma de estar em algum lugar no mundo,
no agora, empurrando a ponta da caneta sobre o pautado,
e como um velho reclamando que se perdeu o mistério de tudo,
e o lírico e o romântico e o utópico estão fadados
a sorte de uma flor que caiu,
na esquina, da bagageira de um motobói veloz.

Tenho 47. Na verdade, 48. Não sou velho nem novo.
Porém, meu coração não está pronto para não sentir.
Mauá, estou sentindo demais!

quinta-feira, 5 de maio de 2016

SONHANDO ACORDADO

SONHANDO ACORDADO
Alvaro Nassaralla (26/04/16)


Flor de dormir
estou sonhando novamente.
Meu coração dói como um dente doce latejando;
estrelas de portas abertas saindo do mar,
mantra luz dos poetas,
patetas: que eles sabem enxergar
o foco do tamanho do tormento e da esperança;
não se envergonham de sujar a cara nas calçadas
e criar, das rosas, o alucinante trovão da ideia;
deliberam sobre árvores, pôres-do-sol, 
luar na estrada enrugada bem nas áreas
de frenagem dos caminhões,
porque o poeta, patético
está nesses flashs
para ser o dono - que seja - de pelo menos instantes,
madrugada a toda na estrada,  
descola-se a alma como num orgasmo.

A velocidade é toda minha como uma vagina sugadora;
adentro novas dimensões
com medo de gostar da realidade,
mas a real está muito além do que sabemos;
ou supomos.

Na velocidade
não encontrei amor:
abocanhei, selvagem, o sexo
e vivi a turbulência contínua do vento vazado.

Estou sonhando novamente,
aquela sensação de estive aqui em outra vida,
ou estou aqui e sou outra pessoa,
portador da velocidade sólida como um vício,
ou uma máquina de flíper
dando-nos mais uma chance de perder*,
ou sou o eu que não me vi
nas penas de falcão peregrino
renascendo finalmente no dorso. 

Estou a salvo novamente
e é estranho o quão novos poderíamos morrer
e quantas vezes fomos salvos.

Estou sonhando
libélula flutuando cascatas,
novamente sonhando quantas vidas tive e tenho.

---
Expressão proferido pelo veterano do Vietnã ao tomar uma dura da políciaquando jogava fliperama no filme "O Substituto" (Stunt Man) - 1981 - Direção: Richard Rush.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Poética - Pedro Tostes


Jardim Minado - Pedro tostes - Editora Patuá
A poesia é mesmo caso sério:

vez por outra vai parar no cemitério.

E sempre volta, como um

zumbi literário.


A poesia brasileira anda broxa,

não mata a cobra,

esconde o pau

e espera ansiosamente pelo

próximo edital.


A poesia brasileira contemporânea

é esquizofônica;

uma hora fala duro,

na outra difícil (e demonstra

pouca propensão a atirar-se

de edifícios).


A poesia brasileira corrente é polida,

faz foto pro cartaz, gosta

de ser notícia no jornal, do caderno

de resenhas, é bonita

limpinha, correta e erra pouco.

Fuma mas não traga,

estupra mas não mata

e tá sempre em cima do muro.


O poeta? Que se foda! Ele que morra duro.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Riso



Alvaro Nassaralla
17/fev/16



Eu atravessei todas as eras e estou aqui.
E como é limitado ser humano:
tudo o que eu faça, por mais que faça,
ainda será pouco ou nada diante do todo.

Recolho-me a insignificância humana
imitando-me dia após dia
canção sobre canção
não sendo importante
mas se um dia o for, menos ainda
serei de importância real.

Porque o real é o olhar através das distâncias inoculadas e mal interpretadas,
e partir sentimento, voltar tempestade
e ir-me como maré revolta.

Com meus papéis e palavras me embrulho
de circunstâncias bobas, tolas
em relógios bombardeados que continuam funcionando
retorcidos no chão dos campos de batalha,
ou nos relógios das torres
que passam anos marcando violências,
futilidades, mesmices
que só o amor seria capaz de curar.

Não há lugar para o pessimismo
mas é muito cedo para que o amor se faça inteiro
se as dálias são ainda crianças e não atingiram
a compreensão de seus longos caules
e da força híbrida imposição-aceitação.

Com um pouco de sorte atingiremos algo próximo ao amor
algo que não tão sério quanto querem que eu seja:
mesmo a chuva goteja purpurinas translúcidas nas janelas.
Estamos tão a parte do que deveríamos ser para o próximo
que já sinto nossos rituais de desculpas chegando,
absorvendo-nos de fantasmas que gingam aos pés do ouvido.

Se for por nós mesmos, seremos sempre inocentes,
sempre heróis dos hábitos e da mediocridade
como um continente de corações atulhados na mesma vida
no mesmo envelhecer laboral
andando sobre nossos cascos de verdades intolerantes
nunca nos dando o direito de acreditar no novo.

E como limitado é o ser humano,
porque nada deveria ser mais sério que a mão
deslizando arranhaduras sobre um ramo de trigo,
a criança drogada no soro brilhante do sol,
as belas fodas debaixo da escada,
o coração cantando na forma habitual de um passarinho,
as asas no voo raso do desejo campeiro,
a liberdade borrada e sorridente da velocidade máxima
que podemos ser enquanto vivos.